sexta-feira, setembro 30, 2005

Psicografia


Não consigo rever aquilo que me assoma a alma, num momento de destruição e encanto.

Arremedos de poemas caem do nada, como chuvas sem sentido pela minha mão a deslizar no amplo deserto de linhas.

Não sei o que faço, mas tenho que fazê-lo.

Poderia se chamar a isto um outro, que de mansinho – mas não mansamente – chega para me mostrar algo que não sei o que é.

Pode ser um caminho que tenho de percorrer agora.

Pode não ser nada além da minha tola imaginação que anseia a amplidão dos lugares onde os sábios de mim se escondem.

Pode ser que seja apenas um imenso vagar de minha mente desonesta e faceira, que a um só tempo brinca com meu sorriso e me acusa com sardônicos dentes de pérolas.

Pode ser. Pode não ser.

Tudo é. Tudo não é.

Aqui, sou.
Pintura: Farewall to Lincoln Square, Raphael Soyer.

quinta-feira, setembro 29, 2005

Praia do Icaraí























Na Praia do Icaraí, Paulinho da Viola encerrava a semana do chorinho no Rio de Janeiro cidade maravilhosa, no dia do santo guerreiro, na praia de Icaraí. Começou bem, obrigado, sob uma lua mais do que cheia, cheíssima. Não mais que de repente, a festa foi abençoada por uma tempestade de água benta, vinda diretamente dos batistérios do céu deste Brasil varonil. A multidão espalhada pela areia da noite musical não teve alternativa senão a fuga desordenada, qual formiguinhas assustadas diante da corredeira de açúcar derramada por um açucareiro desastrado. Os sem-teto secos, amantes do artista, abrigaram-se sob os edifícios da maneira que puderam e continuaram a ouvir o samba de viola do Paulinho o qual, por sua vez, impávido como a própria natureza, lá continuou na tranqüilidade que lhe é peculiar feito um Jorge sem medo de dragões ou tisunamis. E cantou. Lindamente!


Eu, preguiçosamente revoltada com a avalanche de camelôs que, inaugurando uma nova tradição no show-business da terra de Araribóia, inundaram a praia com suas ondas de gigantescas barracas feito árabes no deserto e me reservei o direito à sobrevivência contententando-me com a janela de minha tenda na categoria de uma espectadora que não vê (talvez ouvidoura fosse mais correto, se é que esta palavra seja de possível ocorrência). Até porque não daria para ser diferente, já que os aparelhos sonoros quando acionados em sua máxima potência, tornam-se gigantescos amplificadores auditivos para uso daqueles que como eu, candidatam-se nestes dias festivos a uma surdez galopante. Na praia do Icaraí - o do Icaraí é por honra e mérito do noticiário da BandNews sobre o evento - ainda somos aborígines vivendo nas grandes ocas de concreto armado da província de Nikiti. De qualquer forma, entre chuvas e notas musicais, a festa une e re-une toda a tribo, a fim de se cantar a Tupã.


Eventos assim me remetem a infância onde, nos salões da paróquia onde cresci, meu tio libânes, maronita, cristão e congregado mariano, reunia as grandes estrelas da música da década de 60 (e fins de 50), para o deleite da tribo desta época. Diferentes tribos, semelhantes rituais! Vi passar pela minha infância Jackson do Pandeiro com sua altíssima Almira, Ellen de Lima, Ângela Maria e outros dos quais não posso me lembrar agora porque memória de criança é curta, pois não? Imagina só!


Quem poderia dizer que eu, hoje cheia de seletismos musicais, já arrastei um bocado meu corpo ao ritmo de forrós, chá-chá-chás, twists e por aí afora... Pois é. Todo mundo já pecou alguma vez. Mas entre pecados e prazeres vamos traçando as linhas desta sinfonia saudosa, porque eu estou vestida com as roupas e as armas de Jorge, para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem, já que não sou boba nem nada.

Fotografia: Joaquim da Cunha Bueno Marques (homenagem póstuma).

terça-feira, setembro 20, 2005

O Engasgo


Sentou-se à mesa da cozinha. Havia sentido necessidade de parar um pouco para respirar. O afã diário a vinha cansando faz tempo, mas não podia dar-se por vencida. Afinal de contas, essa não era uma guerra grandiosa, que valesse a pena ser narrada e que dificilmente renderia uma manchete nos jornais. O peso da batalha só a ela dizia respeito. Somente seu corpo conhecia as canseiras dos embates diários. Somente sua mente sabia das estratégias de adaptação que precisara inventar para sobreviver ao lugar comum. Somente suas emoções reconheciam o esforço que faziam a cada segundo para manterem aquela mulher viável.

Não conseguia mais rir de tudo à sua volta, como sempre se espera das donas-das-casas-pilares-da-família. De vez em quando engasgava no meio de uma palavra, numa conversa à toa ou nas refeições compartilhadas com os outros. Era um susto só. A impossibilidade momentânea de continuar no fluxo da vida deixava a todos em desespero. Faziam uma confusão horrorosa, gritavam por seu nome, chamavam por São Brás e batiam em suas costas. Nestes momentos, quase cianótica e num estado estranho de consciência, ria-se por dentro.

Em rápidos segundos olhava para os rostos apavorados, sem referência, e se sentia feliz. Perguntava-se como não conseguiam ver o que estava acontecendo. Geralmente colocavam a culpa do engasgo na água ingerida às pressas, ou no alimento mal cozido que ela mesmo havia preparado. Era engraçado olhar para as técnicas que usavam para trazê-la de volta ao controle de si mesma. Algumas vezes levantavam seus braços para o alto – numa posição de vítima de assalto à mão armada – e, aos berros, mandavam-na ficar calma. Em outras, pegavam-na por trás e apertavam seu diafragma com uma força descomunal, acreditando que assim expulsariam o demônio que a estava atacando. Entre exorcismos e histerias pensava em como seria prolongar aquele estado de semibeatitude no qual sempre se envolvia, mas que nunca consumara. Foi quando a idéia lhe ocorreu.

Começou a pensar nas razões que os outros davam para tais eventos que, de uma forma ou de outra, os tiravam de suas anestesias dando-lhes assunto para a conversa da refeição seguinte. Na desculpa do alimento, entrevia uma possibilidade de resolução definitiva. Precisaria avaliar cuidadosamente e com critérios precisos, que tipo de ingestão poderia resultar no engasgo definitivo ao qual tanto ansiava. Daria uma mãozinha ao inevitável pensava para aliviar a consciência quando uma pontinha de culpa aparecia em seu pensar.

Passara a observar cada alimento com olhar curioso e atento. Avaliava as texturas, sentia seus cheiros, deslumbrava-se com suas cores, media os seus tamanhos. Afinal de contas, se ela queria engasgar para sempre, que fosse hollywoodiano. Os critérios confundiam-se em sua cabeça. Estéticos ou funcionais? Sem perder muito tempo em questões triviais para seu contexto, optou pelos dois. Uniria o útil ao agradável. Juntaria a beleza com a praticidade. Não era uma mulher qualquer. Primara sempre pela organização aliada à harmonia. Uma sensação de triunfo percorria todo seu corpo: sentia-se como um designer de interiores moderno apreciando a conclusão de um difícil projeto de decoração. A noção de autoria incomodou-lhe um pouco. Na verdade a idéia não havia sido sua. Mas quem ligaria para tal questão moral neste momento? Todos os sucessos acontecem por acaso mesmo, pensou. Às vezes as grandes idéias surgem do mais surreal dos lugares e das mais bizarras pessoas. Não se preocuparia mais com pequenas coisas. Precisava resolver todas as pendengas éticas para usufruir seu cinematográfico the end.

Naquele meio-dia, ela sentou à mesa da cozinha. Havia sentido necessidade de parar um pouco para respirar. Sorriu intimamente. Olhou para a fruteira, escolheu uma banana e com os olhos cheios de radiante felicidade, a devorou.

Afinal de contas, ela era brasileira.

Pintura: Tea-Drinking, Andrey Ryabushkin.


segunda-feira, setembro 19, 2005

Segunda-feira Insana




















Velas e lúmens tremulam
Neste embaçado dia que nasce.
Distorcem as imagens e as faces
Dos crentes e ateus sem propósito,
Neste estranho desfile urbano.

Sem vírgulas, pontos ou reticências
Passamos sem forma e em fila
Pelos cantos das ruas de asfalto
Cantando e cantando e cantando.

Nos rostos e nos olhos lavados,
Pelas gotas da chuva que cai,
Misturam-se as lágrimas, represas
Libertas de prisões seculares.


Não somos os mesmos passando.
Sem peso, só sombras e mistérios roubando.


Os gritos, os gritos, os gritos.


Pintura: Elisabeth Gerhardt Sewing, August Macke


domingo, setembro 18, 2005

Silêncio




















No meio da noite,
No silêncio, onde alguma coisa cai,
Procuro os rumores de uma alma.

No meio da madrugada,
Depois do transe, do êxtase,
Procuro pelos silêncios e pelas almas.

No meio da alma
Depois da vigília, dos olhos abertos,
Procuro a noite da madrugada.

Nada vejo,
Nada acho.
Mas sei que lá estão
Os rumores, os êxtases, os silêncios.

Sei que lá está


Sua alma.



Pintura: Fumeé d'Ambre Gris, John Singer Sargent.

sábado, setembro 17, 2005

Os Elefantes da Índia




Sentada em suas almofadas preferidas ela olhava para a parede à sua frente. Alguns elefantes tremulavam no pano da Índia. Uns outros, multicoloridos, pendiam sem movimento de um prego enferrujado. Aguardava, sem mais o que fazer. No dia anterior, surgira uma oportunidade para mudar completamente sua vida, mas recusara. Não havia sentido sua alma vibrar com a perspectiva de transformar em vinho sua água cotidiana. Detestava vinhos. O gosto, geralmente ácido do líquido rubro como os lábios de uma sedutora mulher, deixava sua boca amarga como fel e seu estômago doendo. Tolerava bem a água. Saciava sua sede, misturava-se com tudo ou quase tudo. Não a ameaçava em nada.

A sensação de mediocridade a inundava lentamente. Mesmo sem querer prestar atenção nesta armadilha, não conseguiu evitar a auto-análise. Tinha certeza que aquele não era um bom dia para isto. Sabia de si o suficiente para entender que cairia em tentação e que aquele momento se transformaria num calvário. Faria analogias, metáforas, des-construções e não chegaria a lugar algum. O tempo era implacável e talvez suas defesas fossem tão poderosas que justificassem aquele estado de placidez e conformidade. Desconfiando de todas as explicações, decidiu pelo “é assim mesmo...” O que a incomodava mesmo era aquele terrível silêncio, reinando absoluto dentro dela. Mudez insuportável para quem estava acostumada a tantas vozes enfurecidas que faziam parte de seu repertório interior.

Não estava habituada à quietude mental. Achava interessante a reação dos que compartilhavam de seu mundo real. Não entendiam mudanças de humor. Rupturas na normalidade prenunciavam catástrofes. Talvez colocassem em seus ombros uma responsabilidade que ela nunca quisera ter, mas que havia deixado acontecer por deslumbre. O mito do herói sempre a fascinara. Perguntavam-lhe o que estava acontecendo, mas não ousava responder a qualquer questão. O despropósito de tais intervenções frente ao silêncio absurdo a chocava. Estavam de tal forma sem lugar, que pareciam dissolver-se no ar como fumaça depois de proferidas. A curiosidade matou o gato, pensava. Azar o dele.

Continuava muda olhando os nervosos elefantes. Havia aprendido a ouvir os sinais. Demorava às vezes a compreender as mensagens que deles poderiam emergir. Alguns códigos pareciam indecifráveis. Nestes momentos viajava por todas as letras que aprendera a ler. Nenhuma delas os explicava. Tentava fechar os olhos e a mente. Ligava a televisão. Mas nem sempre era possível se livrar dos apelos. Os elefantes eram insistentes. De um lado a inércia, do outro, o movimento. Filosofia oriental? Muito chinês para seu obstinado pensamento. Fácil demais para aquela angústia surda.

Não gostava de coisas reduzidas a fórmulas simples. A tradição existencialista a perseguia em pensamentos, palavras e obras. Mea culpa, mea culpa. Sofria com isto, mas resistia. Talvez se aceitasse o mundo no olhar tranqüilo dos ascetas, quem sabe? Porém sua origem metropolitana a impedia tais vôos. Gostava dos mistérios e dos enigmas nas palavras, dos murmúrios. Entre linhas, costurava seu solitário mundo emaranhado. Constituída que fora pela argamassa da cultura, seus movimentos a restringiam a lugares comuns. Não seria honesto recusar tal herança.

Quando chegava a tal ponto, percebia que entrara num beco sem saída. Procurar explicações neste ritmo funcionava até um certo ponto. Mas como pensar fora disto? As molduras eram rígidas demais. Precisava dos enquadres e ver sem eles tornava seu horizonte amplo em excesso, a tirava da condução de seu processo. Na realidade o assunto não era tão importante assim. Ficava cada vez mais longínquo a cada pedra tropeçada no caminho. Os elefantes, porém não sossegavam. Como arautos caminhando à frente de um exército sem bandeiras, insistiam em anunciar a catástrofe. Soldados sem causa e belos em seus uniformes, faziam seu papel.

Foi aí que resolveu desligar o ventilador.
Pintura: Oriental Rugs, Henri Matisse.



sexta-feira, setembro 16, 2005

Tango



Beatles tocando na vitrola. I’m so tired. Assim estou. O vazio como cenário, revival sem ocasião num puro acaso que pontua. De meu peito tudo escapa. Onde os pontos de partida ou de chegada? Onde portos seguros? Coleciono indefinições.

Há algum tempo atrás pensei que houvesse colocado um ponto final nisto tudo. Tolice, eram só reticências. Saio de mim como num trailer do cinema fantástico e persigo a imagem desfocada. Acostumada a enquadres, coloco os óculos e nada acontece. Interrogo minha luz interna e ela não responde. Nem pisca. Olhos cegos para dias nublados.

Desespero e reajo. O orgulho fala mais alto e meu corpo estremece. Brava como uma histérica, grito que não preciso de um cão que me guie pelas estradas, que me atravesse as esquinas ou me avise sobre as armadilhas do caminho. Traço um esquema e uso a razão. Recaio no erro: acreditando no risco das palavras, esqueço que sangro.

Respiro. Tento a yoga. Talvez o milenar saber me saiba. Por uns momentos pretendo perder a ilusão de que estar a seu lado bastaria. Herbert Vianna bem sabia que não há nada de novo e ainda somos iguais. Fantasia compensatória. Recurso ingênuo da criança que deseja o doce dos outros. Continuo sem fôlego. Com olhos ardentes fixos num ponto, ainda tento calar as vozes do silêncio obrigatório. Mas não choro. Afinal de contas seria isto o esperado. Talvez fosse a saída para este constrangimento adotar um slogan do tipo meu coração não se cansa de ter esperança. Até que me faria bem. Mas minha inteligência não permitiria uma negligência tamanha, não me deixaria impune. Fácil demais, simples em excesso, reducionista horrores. Paro de respirar e abandono o oriente.

Busco pela imagem. Dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras. Será? Encaro Pacino que dança com os olhos mudos e sempre me surpreende os truques cinematográficos. Identifico-me com o personagem e pergunto: por que não eu? Esqueço que estou do lado de cá e que não faço sucesso algum. Assim sendo, bato o martelo e prescrevo o nada danço. Meus ombros não se mexem e as pernas enrijecem. Entendo que, paradoxalmente, já dancei. No sentido literal, constato ter sido em épocas tão distantes que nem me lembro mais; no simbólico, está sendo, tempo presente e agora.

Sem mais nem menos e em grande estilo, Lupiscínio entra na voz sonora da mulher que diz das saudades de um moço, por favor. Sei que não vou resistir por muito tempo. Por um momento, consigo saber de mim na sombra do fósforo que acende o cigarro.

Capitulo. Hei! moço, por favor, me diga que posso dormir em paz!
Pintura: Subway Platform, Raphael Soyer.

quarta-feira, setembro 14, 2005

Tinta no Cabelo


Há muito não sentava para escrever. As idéias a abandonaram fazia algum tempo. Sua cabeça, invadida pelos cabelos brancos disfarçados pela tinta barata comprada em supermercados, não a ajudava mais. A dança a que estava habituada, onde o pensar e o escrever eram pares constantes, terminara. Houve uma época em que ela primava pelo cuidado na escolha do pigmento que iria aparentemente diminuir alguns bons anos em sua aparência.Tudo mudara, concluíra naquele dia sem ventos. Espantava-se com sua falta de interesse em saber da confiabilidade ou não do miraculoso produto que adquiria, cada vez de uma cor diversa, já que nunca se lembrava qual usara da última vez. Importava sim esconder o brilho de neve fria e fora de propósito que insistia em periodicamente aparecer diante de seus olhos espantados. Como era cada vez mais rápido tal fenômeno, constatava!

Ela não era uma mulher frívola ou mesmo absorvida pelas preocupações femininas sobre o passar do tempo estampado nos rostos, mãos, cabelos ou na disposição para a vida. Lembrava-se que, já na juventude, aqueles insinuosos fios prateados haviam surgido prematuramente e com tal fúria que se tornaram uma marca, um registro que dava consistência ao seu nome e sua diferença dentre as mulheres com quem convivia. Sempre fora deste jeito. A diferença era o traço mais presente em sua vida paradoxalmente anônima.

Não se tratava de uma opção privilegiada que a colocasse acima ou abaixo de qualquer outro ser humano. Muito pelo contrário, esta condição a afastava de um mundo do qual queria, com fervor, participar de um modo comum, corriqueiro e até mesmo insípido. Esforçou-se bastante para alcançar este lugar mais e mais distante. Cada tentativa correspondia a uma frustração e cada tropeço a obrigava a outro recomeço. Ser igual, comum, insípida. Esta tarefa se mostrava tão desconhecida e estranha à sua natureza íntima que o esforço a fazia se sentir mais desigual ainda.

A palavra desigual lhe caíra melhor, pois diferença passava ao largo do sentimento que sempre a acompanhara desde que se entendia por gente. Desigual cheirava à falta de adaptação, de inclusão, de pertencimento. Esta palavra estabelecia para ela uma discordância da natureza, onde as águas deveriam percorrer seus fluxos e encontrarem os seus mares, onde as árvores teriam que crescer a partir de suas sementes plantadas na terra fresca e fértil, onde os bebês nasceriam da relação de amor entre mulheres e homens.

Com ela era diferente. Não seguia nenhum destes ritmos porque assim era o seu natural. Gostava de jazz quando todos ouviam rock, de filmes com finais felizes quando as fitas subjetivas e confusas relacionavam um círculo à frente de sua época, de rezar antes de dormir num tempo onde a morte de Deus fora anunciada em altos brados. Não que houvesse se negado a fazer parte de um sem número de circunstâncias as quais a admitissem num planeta repleto de promessas progressistas e de evolução garantida. As roupas que usara, cheia de cores e brilhos, as experiências com substâncias que asseguravam a abertura a novos mundos invisíveis e místicos, mas que nunca conseguiram afetar a sua percepção além de umas poucas letras dançando a sua frente, o mergulho em correntes textuais tão bizarros e lastimáveis que traziam a sua alma apenas aflição, medo e o sentido da morte. Definitivamente era uma abduzida.

Desigual, abduzida... Talvez daí se explicasse a interminável gama de cores que escolhia, sem fidelidade a qualquer uma delas e que a tornava camaleônica diante do espelho, mês após mês. Variava do preto fechado ao castanho-escuro, ia dos tons acaju aos avermelhados fortes chegando mesmo, em acessos de desespero, aos louros acinzentados. Já resistira muitas vezes a tomar tais decisões, numa lealdade estúpida a imagem juvenil que a traíra ao longo dos anos de um modo cruel e implacável.

O rosto quase não demonstrava a aquisição das experiências pelas quais passara, pois, segundo ouvira falar, as rugas seriam sinais de maturidade e sabedoria. Achava esta idéia de uma maldade e deselegância extremista. Como tal evidência natural, percurso inevitável do corpo, poderia ser testemunho legítimo de todas as vivências, por vezes inomináveis, de uma mulher ou de um homem? Não desejava cair na armadilha filosófica com que se deparava ao olhar para os milhares de possibilidades explicativas que brilhavam a sua frente, quais vaga-lumes afoitos que teriam, inevitavelmente que sucumbir, após uma noite de efemeridades. De qualquer forma, sentia que já não era a mesma pessoa com a qual se acostumara. Ou mesmo, quem sabe, nunca soubera que pessoa era ou havia sido em qualquer época de sua vida.

Aquele apelo e descaso pela tinta em seu cabelo poderiam ser um indicador, uma estrela que apontava para alguma coisa que não sabia bem o que pudesse ser. Talvez a resposta, talvez a pergunta. Diante do espelho inconclusivo, mudo, não respondente às questões tão antigas quanto o mundo, via-se como um esboço primeiro de um pintor; formas iniciadas, promessas de uma obra-prima. Teria que decidir logo. A paleta de cores vivas saltava à sua frente. Do cabelo molhado, pingos d’água frescas e frias escorriam pelos seus ombros, provocando-lhe arrepios, distraindo sua vontade e adiando sua decisão. Ficar imóvel neste momento seria o mais adequado. Percebia que cada gota que escorria completava um pedaço do traço que formaria o desenho completo de sua imagem perdida.

Deixou-se terminar. Serenamente fechou seus olhos e sentiu as finas cerdas do pincel, visível somente aos desiguais, percorrerem seu corpo de um modo gentil e delicado. Num momento único deu-se conta do que estava acontecendo. Respirou profundamente, abriu a lata de lixo e jogou todas as tintas fora.

Pintura: Moça com Brinco de Pérola, Jhoannes Vermeer.


terça-feira, setembro 13, 2005

Retrato de uma princesa desconhecida.














Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos
Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino



Sophia de Mello Breyner Andresen



Pintura: Jeanne Hébuterne, Amadeo Modigliani.

O fiel da balança.


Precisou sair depressa para pegar um caderno onde pudesse jogar todos aqueles murmúrios que inundavam o quarto semi-iluminado pelo abajur de minarete que repousava ao lado de sua cama solitária. De vez em quando levava as mãos ao rosto para disfarçar o tumulto interno que aquela situação provocava. Dar-se à confissão deste momento como pulsante não era, realmente, o que a faria feliz. Pensava já ter passado – como um gato com suas nove vidas – facilmente por essa estranha sensação de nada a fazer. Mais uma vez amor...

A sombra rápida e deslizante a convocava a cercar a questão com delicadeza e sobriedade embora não soubesse ao certo para que. Talvez estivesse a criar um novo hábito em substituição à tão conhecida fuga pela tangente, coisa que não mais satisfazia sua premente erupção em fogo e lava. O hábito não faz o monge, lembrou em desespero. Acreditava nestas coisas ditas de pai para filho, maldições seculares, heranças obscuras, assim, assim, terminando por se surpreender numa prisão de dogmas e crenças onde a chave para o libertas desaparecera fazia tempo.

Quae sera tamen... Quem sabe o monge não usasse mais o hábito. Seria uma solução enquanto trocava as letras das palavras antes tão fáceis de se mostrarem através daquele lápis vermelho e negro. Estranha escrita, colorida e soturna.

Começara à toa, como achava que havia vivido até então, deixando que as frases nascessem sem muito pensar ou articular na lógica ou ausência dela, linguagem conclusiva, fechada, orientadora. Caso fosse surpreendida nesse instante por alguém curioso e inoportuno – condição natural ao sujeito – não saberia responder à questão alguma. A falta de objetividade às vezes a irritava profundamente. Era como se fosse lançada numa aventura sem mapa, bússola ou outra ferramenta qualquer de orientação. A noite também não a conduzia pelo deserto de si mesma, já que as estrelas se escondiam diante do tempo indeciso, confusas que ficavam diante da dualidade inverno e verão. Nada escapava a esta balança sem...

A palavra faltara. Entendia pelo conhecimento anterior sobre os nomes das coisas que, para se ter a medida exata era preciso existir o ponto de sustentação de onde tudo partia e, certamente, para onde tudo voltaria. O fiel da balança. Quanta ironia, cogitava! A palavra ausente, traindo a quem a possuía, mostrara-se tão desleal quanto infiel. Prato cheio para uma análise, ato falho dentre todas as falhas de uma noite sem sono.
Pintura: Aquarium, Henri Matisse.