sábado, setembro 17, 2005

Os Elefantes da Índia




Sentada em suas almofadas preferidas ela olhava para a parede à sua frente. Alguns elefantes tremulavam no pano da Índia. Uns outros, multicoloridos, pendiam sem movimento de um prego enferrujado. Aguardava, sem mais o que fazer. No dia anterior, surgira uma oportunidade para mudar completamente sua vida, mas recusara. Não havia sentido sua alma vibrar com a perspectiva de transformar em vinho sua água cotidiana. Detestava vinhos. O gosto, geralmente ácido do líquido rubro como os lábios de uma sedutora mulher, deixava sua boca amarga como fel e seu estômago doendo. Tolerava bem a água. Saciava sua sede, misturava-se com tudo ou quase tudo. Não a ameaçava em nada.

A sensação de mediocridade a inundava lentamente. Mesmo sem querer prestar atenção nesta armadilha, não conseguiu evitar a auto-análise. Tinha certeza que aquele não era um bom dia para isto. Sabia de si o suficiente para entender que cairia em tentação e que aquele momento se transformaria num calvário. Faria analogias, metáforas, des-construções e não chegaria a lugar algum. O tempo era implacável e talvez suas defesas fossem tão poderosas que justificassem aquele estado de placidez e conformidade. Desconfiando de todas as explicações, decidiu pelo “é assim mesmo...” O que a incomodava mesmo era aquele terrível silêncio, reinando absoluto dentro dela. Mudez insuportável para quem estava acostumada a tantas vozes enfurecidas que faziam parte de seu repertório interior.

Não estava habituada à quietude mental. Achava interessante a reação dos que compartilhavam de seu mundo real. Não entendiam mudanças de humor. Rupturas na normalidade prenunciavam catástrofes. Talvez colocassem em seus ombros uma responsabilidade que ela nunca quisera ter, mas que havia deixado acontecer por deslumbre. O mito do herói sempre a fascinara. Perguntavam-lhe o que estava acontecendo, mas não ousava responder a qualquer questão. O despropósito de tais intervenções frente ao silêncio absurdo a chocava. Estavam de tal forma sem lugar, que pareciam dissolver-se no ar como fumaça depois de proferidas. A curiosidade matou o gato, pensava. Azar o dele.

Continuava muda olhando os nervosos elefantes. Havia aprendido a ouvir os sinais. Demorava às vezes a compreender as mensagens que deles poderiam emergir. Alguns códigos pareciam indecifráveis. Nestes momentos viajava por todas as letras que aprendera a ler. Nenhuma delas os explicava. Tentava fechar os olhos e a mente. Ligava a televisão. Mas nem sempre era possível se livrar dos apelos. Os elefantes eram insistentes. De um lado a inércia, do outro, o movimento. Filosofia oriental? Muito chinês para seu obstinado pensamento. Fácil demais para aquela angústia surda.

Não gostava de coisas reduzidas a fórmulas simples. A tradição existencialista a perseguia em pensamentos, palavras e obras. Mea culpa, mea culpa. Sofria com isto, mas resistia. Talvez se aceitasse o mundo no olhar tranqüilo dos ascetas, quem sabe? Porém sua origem metropolitana a impedia tais vôos. Gostava dos mistérios e dos enigmas nas palavras, dos murmúrios. Entre linhas, costurava seu solitário mundo emaranhado. Constituída que fora pela argamassa da cultura, seus movimentos a restringiam a lugares comuns. Não seria honesto recusar tal herança.

Quando chegava a tal ponto, percebia que entrara num beco sem saída. Procurar explicações neste ritmo funcionava até um certo ponto. Mas como pensar fora disto? As molduras eram rígidas demais. Precisava dos enquadres e ver sem eles tornava seu horizonte amplo em excesso, a tirava da condução de seu processo. Na realidade o assunto não era tão importante assim. Ficava cada vez mais longínquo a cada pedra tropeçada no caminho. Os elefantes, porém não sossegavam. Como arautos caminhando à frente de um exército sem bandeiras, insistiam em anunciar a catástrofe. Soldados sem causa e belos em seus uniformes, faziam seu papel.

Foi aí que resolveu desligar o ventilador.
Pintura: Oriental Rugs, Henri Matisse.