quarta-feira, novembro 30, 2005

Espelhos




















XLVI


Talvez eu seja
O sonho de mim mesma,
Criatura-ninguém
Espelhismo de outra
Tão em sigilo e extrema
Tão sem medida
Densa e clandestina

Que a bem da vida
A carne se fez sombra.

Talvez eu seja tu mesmo
Tua soberba e afronta.
E o retrato
De muitas inalcançáveis
Coisas mortas.

Talvez não seja.
E ínfima, tangente
Aspire indefinida
Um infinito de sonhos
E de vidas.

Hilda Hilst, in Cantares. Ed. Globo.
ue des Gobelins.
Fotógrafo: Eugenène Atget.


Fonte da Imagem: http://www.masters-of-photography.com

sexta-feira, novembro 25, 2005

As Cidades e as Coisas
















Exílio


Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades.


Sophia de Mello Breyner, in Poemas Escolhidos. Companhia das Letras.
Fotógrafo: Eugene Atget

Fonte: http://www.bregler-fotografien.de

sábado, novembro 19, 2005

O amor tem sabor.






















O Amor

Deus - talvez esteja aqui, neste pedaço de mim e de ti, ou naquilo que, de ti, em mim ficou. Está nos teus lábios, na tua voz, nos teus olhos, e talvez ande por entre os teus cabelos, ou nesses fios abstractos que desfolho, com os dedos da memória, quando os evoco.

Existe: é o que sei quando me lembro de ti. Uma relação pode durar o que quiser; será, no entanto, essa impressão divina que faz a sua permanência? Ou impõe-se devagar, como as coisas a que o tempo nos habitua, sem se dar por isso, com a pressão subtil da vida?

Um deus não precisa do tempo para existir: nós, sim. E o tempo corre por entre estas ausências, mete-se no próprio instante em que estamos juntos, foge por entre as palavras que trocamos, eu e tu, para que um e outro as levemos conosco, e com elas o que somos, a ansia efémera dos corpos, o mais fundo desejo das almas.

Aqui, um deus não vive sozinho, quando o amor nos junto. Desce dos confins da eternidade, abandona o mais remoto dos infinitos, e senta-se aos pés da cama, como um cão, ouvindo a música da noite. Um deus só existe enquanto o dia não chega; por isso adiamos a madrugada, para que não nos abandone, como se um deus não pudesse existir para lá do amor, ou o amor não se pudesse fazer sem um deus.



Nuno Júdice.

Fotografia: Lovers in Bistro, Gyula Halasz Brassai.

domingo, novembro 13, 2005

Tudo Passa


















"Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está aí, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada “impulso vital”. Pois esse impulso às vezes, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te surpreenderás pensando algo assim como “estou contente outra vez”. Ou simplesmente “continuo”, porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como “sempre” ou “nunca”. Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicídio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim – nós, não. Contidamente continuamos. E substituímos expressões fatais como “não resistirei” por outras mais mansas, como “sei que vai passar”. Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência."
Caio Fernando Abreu, in Caio 3D: O essencial da década de 80, Ed. Agir.
Fotografia: Freezer, William Eggleston.

terça-feira, novembro 08, 2005

Iconoclastia


















Há imagens que vagueiam por dentro de nós, como se procurassem alguma coisa, ou apenasque as fixemos à realidade do ser. Como esses cães que correm pelos campos,sem destino certo, não se interessando sequer pelos coelhos que espreitam de dentro da terra, as imagens farejam um fumo longínquo, a mensagem nascida não se sabe de onde, e tentam traduzi-la: mas são mudas, limitando-se a movimentos vagos no ar do espírito. As imagens não trazem consigo nenhum significado, atropelam-se na precipitação das luzes, e nem a morte nem a vida lhes dão esse último sentido que a crença num deus poderá justificar. Então, parto essas imagens: uma a uma, com a lentidão monótona de quem sabe que esse trabalho é para ser feito, junto com os estilhaços no canto da casa, e admiro subitamente a brancura das paredes, o quadro limpo do céu por trás da janela, e tento esquecer o gemido, como se um animal ganisse para dentro, que nasce no fundo de mim, onde um gesto antigo me obriga a colar esses restos.

Nuno Júdice, in Por Dentro do Fruto a Chuva.
Imagem: Fitinhas, por Ananda Porto.

domingo, novembro 06, 2005

Deus é Naja.




















"Estás desempregado? Teu amor sumiu? Calma: sempre pode pintar uma jamanta na esquina.
Tenho um amigo , cujo nome, por muitas razões, não posso dizer, conhecido como o mais dark. Dark no visual, dark nas emoções, dark nas palavras: darkésimo. Não nos conhecemos a muito tempo, mas imagino que, quando ainda não havia darks, ele já era dark. Do alto de sua darkice futurista, devia olhar com soberano desprezo para aquela extensa legião de paz e amor, trocando flores, vestida de branco e cheia de esperança.
Pode parecer ilógico, mas o mais dark dos meus amigos é também uma das pessoas mais engraçadas que conheço. Rio sem parar do humor dele- humor dark, claro. Outro dia esperávamos um elevador, exaustos no fim da tarde, quando de repente ele revirou os olhos, encostou a cabeça na parede, suspirou bem fundo e soltou essa: -"Ai, meu Deus, minha única esperança é que uma jamanta passe por cima de mim..." Descemos o elevador rindo feito hienas.
Devíamos ter ido embora, mas foi num daqueles dias gelados, propícios aos conhaques e às abobrinhas. Tomamos um conhaque no bar. E imaginamos uma história assim: você anda só, cheio de tristeza, desamado, duro, sem fé nem futuro. Aí você liga para o Jamanta Express e pede: -"Por favor, preciso de uma jamanta às 20h15, na esquina da rua tal com tal. O cheque estará no bolso esquerdo da calça". Às 20h14, na tal esquina (uma ótima esquina é a Franca com Haddock Lobo, que tem aquela descidona) , você olha para esquina de cima. E lá está- maravilha!- parada uma enorme jamanta reluzente, soltando fogo pelas ventas que nem um dragão de história infantil.
O motorista espia pela janela, olha para você e levanta o polegar. Você levanta o polegar: tudo bem. E começa a atravessar a rua. A jamanta arranca a mil, pneus guinchando no asfalto. Pronto: acabou. Um fio de sangue escorrendo pelo queixo, a vítima geme suas últimas palavras: -"Morro feliz. Era tudo que eu queria..."
Dia seguinte, meu amigo dark contou: - "Tive um sonho lindo. Imagina só, uma jamanta toda dourada..." Rimos até ficar com dor na barriga. E eu lembrei dum poema antigo de Drummond. Aquele Consolo na Praia, sabe qual? "Vamos não chores / A infância está perdida/ A mocidade está perdida/ Mas a vida não se perdeu" –ele começa, antes de enumerar as perdas irreparáveis: perdeste o amigo, perdeste o amor, não tens nada além da mágoa e solidão. E quando o desejo da jamanta ameaça invadir o poema – Drummond, o Carlos, pergunta: "Mas, e o humor?" Porque esse talvez seja o único remédio quando ameaça doer demais: invente uma boa abobrinha e ria, feito louco, feito idiota, ria até que o que parece trágico perca o sentido e fique tão ridículo que só sobra mesmo a vontade de dar uma boa gargalhada. Dark, qual o problema?
Deus é naja - descobrimos outro dia.
O mais dark dos meus amigos tem esse poder, esse condão. E isso que ele anda numa fase problemática. Problemas darks, evidentemente. Naja ou não, Deus (ou Diabo?) guarde sua capacidade de rir descontroladamente de tudo. Eu, às vezes, só às vezes, também consigo. Ultimamente, quase não. Porque também me acontece – como pode estar acontecendo a você que quem sabe me lê agora - de achar que tudo isso talvez não tenha a menor graça. Pode ser: Deus é naja, nunca esqueça, baby.
Segure seu humor. Seguro o meu, mesmo dark: vou dormir profundamente e sonhar com uma jamanta. A mil por hora."
Caio Fernando Abreu.
Fotografia: Ananda Porto de Almeida