domingo, abril 16, 2006

Páscoa



















Nem ovos, nem coelhos. O dia amanheceu indeciso, sem saber se chovia ou se solria. O computador não gosta de neologismos. Para cada palavra inventada, um vermelho de repreensão. O micro não é artista. Trabalhador braçal, que sempre opera por argumentos de autoridade: faça isto ou faça aquilo. O micro não pensa. Igual a muitos de nós, que por um engano do pensamento, achamos que pensamos. Tudo por causa do solrir.

Voltando à Páscoa fria, decidiu-se a natureza pelo calor e pela luz, coisa que muito me alegrou, por conta da incerteza de comemorar ou não comemorar o renascer. Ficaria com a pulga atrás da orelha se a vida conspirasse contra a comemoração, causando-me uma dúvida pra lá de cartesiana, já que ando decidindo crer não só para ver. Crer não só para ver. As palavras são como espelhos d’água turva, que refletem ao avesso aquilo que não se quer dizer, o indizível, o que nem mesmo se sabe o que é a não ser pela sensação ou pela intuição, ao mesmo tempo sabendo-se exatamente aquilo que seja.

Páscoa flamenca. Não da dança, mais do time. Páscoa vermelha e negra. Páscoa de gritos e não de sussurros. Páscoa da torcida. Páscoa de Jorge. Salve, Jorge!

Não foi tão mau assim, como dizem os teens. Sensação de ressaca, preguiça de começar de novo e contar comigo. Será que vai valer a pena, ter amanhecido?


Sandra Porto

Imagem: Le vieux juif (Le vieillard), Pablo Picasso.





sábado, abril 08, 2006

Play it again, Sam! (1ª parte)




Como era mesmo o nome dele? Passado quase trinta anos, não conseguia se lembrar com tanta facilidade deste detalhe, mesmo acordando todas as manhãs ao seu lado. Olhava à sua direita, já que gostava de dormir do lado do coração - superstição, coisas de mulher, sabe-se lá – e tinha a mesma sensação de desconforto. Sentava-se na cama e com muito cuidado para não acordá-lo, descobria o corpo envolvido pelos lençóis. Observava de um jeito minucioso, como um detetive a descobrir as pistas de um crime, os detalhes que já vira mais de um milhão de vezes. Às vezes até reconhecia alguns como, por exemplo, a cicatriz da cirurgia do acidente de carro que quase o matara desprevenido, porque afinal de contas, a morte, quando quer aparecer, não avisa a ninguém mesmo, não é não? E também aquele cheiro! Conseguia lembrar mais dos cheiros das coisas do que das coisas em si. Não dava muita importância aos registros oficiais das pessoas, como nomes, sobrenomes, coisas do tipo, porque sempre mentiam sobre elas. Não confiava nas palavras escritas, ditas ou oficializadas. Mas os cheiros não. Confiava que cada coisa tinha seu aroma próprio. Sabia do cheiro dos medos, das alegrias, dos interesses escondidos e até dos pensamentos guardados no bem no fundo das almas das pessoas.

Sandra Porto

Fonte: Imagem: http://www.getty.edu