quarta-feira, setembro 14, 2005

Tinta no Cabelo


Há muito não sentava para escrever. As idéias a abandonaram fazia algum tempo. Sua cabeça, invadida pelos cabelos brancos disfarçados pela tinta barata comprada em supermercados, não a ajudava mais. A dança a que estava habituada, onde o pensar e o escrever eram pares constantes, terminara. Houve uma época em que ela primava pelo cuidado na escolha do pigmento que iria aparentemente diminuir alguns bons anos em sua aparência.Tudo mudara, concluíra naquele dia sem ventos. Espantava-se com sua falta de interesse em saber da confiabilidade ou não do miraculoso produto que adquiria, cada vez de uma cor diversa, já que nunca se lembrava qual usara da última vez. Importava sim esconder o brilho de neve fria e fora de propósito que insistia em periodicamente aparecer diante de seus olhos espantados. Como era cada vez mais rápido tal fenômeno, constatava!

Ela não era uma mulher frívola ou mesmo absorvida pelas preocupações femininas sobre o passar do tempo estampado nos rostos, mãos, cabelos ou na disposição para a vida. Lembrava-se que, já na juventude, aqueles insinuosos fios prateados haviam surgido prematuramente e com tal fúria que se tornaram uma marca, um registro que dava consistência ao seu nome e sua diferença dentre as mulheres com quem convivia. Sempre fora deste jeito. A diferença era o traço mais presente em sua vida paradoxalmente anônima.

Não se tratava de uma opção privilegiada que a colocasse acima ou abaixo de qualquer outro ser humano. Muito pelo contrário, esta condição a afastava de um mundo do qual queria, com fervor, participar de um modo comum, corriqueiro e até mesmo insípido. Esforçou-se bastante para alcançar este lugar mais e mais distante. Cada tentativa correspondia a uma frustração e cada tropeço a obrigava a outro recomeço. Ser igual, comum, insípida. Esta tarefa se mostrava tão desconhecida e estranha à sua natureza íntima que o esforço a fazia se sentir mais desigual ainda.

A palavra desigual lhe caíra melhor, pois diferença passava ao largo do sentimento que sempre a acompanhara desde que se entendia por gente. Desigual cheirava à falta de adaptação, de inclusão, de pertencimento. Esta palavra estabelecia para ela uma discordância da natureza, onde as águas deveriam percorrer seus fluxos e encontrarem os seus mares, onde as árvores teriam que crescer a partir de suas sementes plantadas na terra fresca e fértil, onde os bebês nasceriam da relação de amor entre mulheres e homens.

Com ela era diferente. Não seguia nenhum destes ritmos porque assim era o seu natural. Gostava de jazz quando todos ouviam rock, de filmes com finais felizes quando as fitas subjetivas e confusas relacionavam um círculo à frente de sua época, de rezar antes de dormir num tempo onde a morte de Deus fora anunciada em altos brados. Não que houvesse se negado a fazer parte de um sem número de circunstâncias as quais a admitissem num planeta repleto de promessas progressistas e de evolução garantida. As roupas que usara, cheia de cores e brilhos, as experiências com substâncias que asseguravam a abertura a novos mundos invisíveis e místicos, mas que nunca conseguiram afetar a sua percepção além de umas poucas letras dançando a sua frente, o mergulho em correntes textuais tão bizarros e lastimáveis que traziam a sua alma apenas aflição, medo e o sentido da morte. Definitivamente era uma abduzida.

Desigual, abduzida... Talvez daí se explicasse a interminável gama de cores que escolhia, sem fidelidade a qualquer uma delas e que a tornava camaleônica diante do espelho, mês após mês. Variava do preto fechado ao castanho-escuro, ia dos tons acaju aos avermelhados fortes chegando mesmo, em acessos de desespero, aos louros acinzentados. Já resistira muitas vezes a tomar tais decisões, numa lealdade estúpida a imagem juvenil que a traíra ao longo dos anos de um modo cruel e implacável.

O rosto quase não demonstrava a aquisição das experiências pelas quais passara, pois, segundo ouvira falar, as rugas seriam sinais de maturidade e sabedoria. Achava esta idéia de uma maldade e deselegância extremista. Como tal evidência natural, percurso inevitável do corpo, poderia ser testemunho legítimo de todas as vivências, por vezes inomináveis, de uma mulher ou de um homem? Não desejava cair na armadilha filosófica com que se deparava ao olhar para os milhares de possibilidades explicativas que brilhavam a sua frente, quais vaga-lumes afoitos que teriam, inevitavelmente que sucumbir, após uma noite de efemeridades. De qualquer forma, sentia que já não era a mesma pessoa com a qual se acostumara. Ou mesmo, quem sabe, nunca soubera que pessoa era ou havia sido em qualquer época de sua vida.

Aquele apelo e descaso pela tinta em seu cabelo poderiam ser um indicador, uma estrela que apontava para alguma coisa que não sabia bem o que pudesse ser. Talvez a resposta, talvez a pergunta. Diante do espelho inconclusivo, mudo, não respondente às questões tão antigas quanto o mundo, via-se como um esboço primeiro de um pintor; formas iniciadas, promessas de uma obra-prima. Teria que decidir logo. A paleta de cores vivas saltava à sua frente. Do cabelo molhado, pingos d’água frescas e frias escorriam pelos seus ombros, provocando-lhe arrepios, distraindo sua vontade e adiando sua decisão. Ficar imóvel neste momento seria o mais adequado. Percebia que cada gota que escorria completava um pedaço do traço que formaria o desenho completo de sua imagem perdida.

Deixou-se terminar. Serenamente fechou seus olhos e sentiu as finas cerdas do pincel, visível somente aos desiguais, percorrerem seu corpo de um modo gentil e delicado. Num momento único deu-se conta do que estava acontecendo. Respirou profundamente, abriu a lata de lixo e jogou todas as tintas fora.

Pintura: Moça com Brinco de Pérola, Jhoannes Vermeer.