terça-feira, setembro 20, 2005

O Engasgo


Sentou-se à mesa da cozinha. Havia sentido necessidade de parar um pouco para respirar. O afã diário a vinha cansando faz tempo, mas não podia dar-se por vencida. Afinal de contas, essa não era uma guerra grandiosa, que valesse a pena ser narrada e que dificilmente renderia uma manchete nos jornais. O peso da batalha só a ela dizia respeito. Somente seu corpo conhecia as canseiras dos embates diários. Somente sua mente sabia das estratégias de adaptação que precisara inventar para sobreviver ao lugar comum. Somente suas emoções reconheciam o esforço que faziam a cada segundo para manterem aquela mulher viável.

Não conseguia mais rir de tudo à sua volta, como sempre se espera das donas-das-casas-pilares-da-família. De vez em quando engasgava no meio de uma palavra, numa conversa à toa ou nas refeições compartilhadas com os outros. Era um susto só. A impossibilidade momentânea de continuar no fluxo da vida deixava a todos em desespero. Faziam uma confusão horrorosa, gritavam por seu nome, chamavam por São Brás e batiam em suas costas. Nestes momentos, quase cianótica e num estado estranho de consciência, ria-se por dentro.

Em rápidos segundos olhava para os rostos apavorados, sem referência, e se sentia feliz. Perguntava-se como não conseguiam ver o que estava acontecendo. Geralmente colocavam a culpa do engasgo na água ingerida às pressas, ou no alimento mal cozido que ela mesmo havia preparado. Era engraçado olhar para as técnicas que usavam para trazê-la de volta ao controle de si mesma. Algumas vezes levantavam seus braços para o alto – numa posição de vítima de assalto à mão armada – e, aos berros, mandavam-na ficar calma. Em outras, pegavam-na por trás e apertavam seu diafragma com uma força descomunal, acreditando que assim expulsariam o demônio que a estava atacando. Entre exorcismos e histerias pensava em como seria prolongar aquele estado de semibeatitude no qual sempre se envolvia, mas que nunca consumara. Foi quando a idéia lhe ocorreu.

Começou a pensar nas razões que os outros davam para tais eventos que, de uma forma ou de outra, os tiravam de suas anestesias dando-lhes assunto para a conversa da refeição seguinte. Na desculpa do alimento, entrevia uma possibilidade de resolução definitiva. Precisaria avaliar cuidadosamente e com critérios precisos, que tipo de ingestão poderia resultar no engasgo definitivo ao qual tanto ansiava. Daria uma mãozinha ao inevitável pensava para aliviar a consciência quando uma pontinha de culpa aparecia em seu pensar.

Passara a observar cada alimento com olhar curioso e atento. Avaliava as texturas, sentia seus cheiros, deslumbrava-se com suas cores, media os seus tamanhos. Afinal de contas, se ela queria engasgar para sempre, que fosse hollywoodiano. Os critérios confundiam-se em sua cabeça. Estéticos ou funcionais? Sem perder muito tempo em questões triviais para seu contexto, optou pelos dois. Uniria o útil ao agradável. Juntaria a beleza com a praticidade. Não era uma mulher qualquer. Primara sempre pela organização aliada à harmonia. Uma sensação de triunfo percorria todo seu corpo: sentia-se como um designer de interiores moderno apreciando a conclusão de um difícil projeto de decoração. A noção de autoria incomodou-lhe um pouco. Na verdade a idéia não havia sido sua. Mas quem ligaria para tal questão moral neste momento? Todos os sucessos acontecem por acaso mesmo, pensou. Às vezes as grandes idéias surgem do mais surreal dos lugares e das mais bizarras pessoas. Não se preocuparia mais com pequenas coisas. Precisava resolver todas as pendengas éticas para usufruir seu cinematográfico the end.

Naquele meio-dia, ela sentou à mesa da cozinha. Havia sentido necessidade de parar um pouco para respirar. Sorriu intimamente. Olhou para a fruteira, escolheu uma banana e com os olhos cheios de radiante felicidade, a devorou.

Afinal de contas, ela era brasileira.

Pintura: Tea-Drinking, Andrey Ryabushkin.