quarta-feira, novembro 29, 2006

Gentilezas
























Penso em Rilke. Penso gentilezas. Penso vagalumes e silêncios. Penso no vislumbre dos cheiros das alfazemas que não conheço. Penso nos sabores dos frutos que ainda estão por vir e saboreio este antecipar de vida. A alegria não é um bem que se tem quando se quer. Ao pensar nas coisas que aqui sempre estarão, reconheço os alvoreceres da força da existência, independente do quanto possa me sentir morta. De todos aqueles que se sentem mortos. De todos aqueles e de todas as coisas que já não mais existem. Esta possibilidade de se saber antes do que sempre existirá, esta concretude de que nada depende daquilo que se percebe é reconfortante. Não há com que se preocupar. Rãs aparecerão pelas manhãs molhadas pela chuva e chapinharão nas poças suas patas saltitantes. Patos voarão nos céus procurando um lugar aonde poderão continuar suas livres vidas, sempre que a hora chegar. Folhas cairão, folhar irão nascer. Primaveras e outonos. Verões e invernos. Diferentes, talvez. Sempre serão. Não me importo mais. Confio.


Sandra Porto.

Imagem: Retratos de família.
Fotógrafo: Luís Pisco

quinta-feira, setembro 28, 2006

Corpo




















Sem saber o que dizer, me sinto. Nua de palavras e repleta de pensares, o corpo reclama de atitudes. Não tenho nada para lhe dar, espere, acalme-se, corpo rebelde que não quer ouvir. Corpo intranqüilo que sabe pedir, mas não sabe dar. Corpo sem rumo que se debate em sensações inominadas mas precisas e preciosas. Não me tenha como uma escrava de seus desejos. Há muito desacredito do impulso e das paixões, querendo apenas ouvir a voz que não se faz presente e que me traria a quietude. Não, não me venha com apelos inúteis. Calo-te como quem comete um ato sem pensar e se condena ao mais severo julgamento. Arrependimentos se fazem distantes e deprovidos de propósito, diante da decisão profunda de não querer te saber. Conheço-te mais sabiamente do que pensas e por isso, emudeço diante de tua voz estridente e contínua. Durma, companheiro dos caminhos percorridos há tanto tempo. Durma e me sonhe.


Sandra Porto.

Imagem: John Singer Sargent




Dança

























Fico diante do teclado esperando que as palavras apareçam. Procuro a espontaneidade que há muito me fazia sentar e escrever bobagens calorosas e infantis, escritas de uma pessoa que de mim se escondeu. Procuro encontrar nos cantinhos de meu ser o lugar das brincadeiras, das cartas de amor (embora elas sejam ridículas), dos sorrisos sem restrições e dos abraços apertados de tanto carinho que sufocam. Fico aqui esperando. Já entendo que nesta espera a angústia será sempre a mão provocadora de algum movimento. Qualquer um. Ele sempre vem e tenho paciência. Meus dedos percorrem o teclado de qualquer maneira, numa falta de jeito que dá dó. Deixo que as palavras se manifestem, querendo que meu julgamento saia da frente e que, sem nenhum murmúrio, as deixem falar. Desejo intensamente que brotem dos desertos sem vegetação e dos lagos carentes de água. Quero que elas venham e me tomem. Incorretas, sem esquadros, irrestritas. Apenas explosões. Pequenas talvez. Mas que provoquem estragos, que abram fendas, que engulam os resquícios da não vida que tenho em mim agora. Que elas me convençam de que não há carência de fechamentos. Que me proponham as pedras e as águas e as cores e os ventos. Que me apontem os pulsares entranhados da terra e os nascimentos de estrelas. Que me mostrem o poder dos ventos e das marés, dos rios e das chuvas e que me digam que o amor e o ódio são a mesma coisa. Que dancem na minha frente feito sufis, realizando a divindade em seus transes brancos e solitários. Que me emocionem e tragam lágrimas aos meus olhos. Que gritem nos meus ouvidos: Vá menina, vá!

E então curvarei minha cabeça, deitarei meu corpo despojado das tantas palavras que me alucinam e voarei por sobre o universo, despejando em cada coisa viva minha gratidão e o meu amor.

Sandra Porto.

Imagem: Último Capítulo
Fotógrafo: Marco Ricca.

quinta-feira, julho 27, 2006

Marés



















Tenho fases assim como as marés. Às vezes calma fico, e assim não me reconheço. Nestes tempos onde não me acho e onde todos a mim procuram sem encontrar, me espraio feito uma onda bebê nascida do ventre fértil de Iemanjá, e choro. Chorar rítmico, como se fora uma música composta pelos ventos leves que não querem nada além de refrescar as nossas peles ressecadas pelas dores do mundo. Um toar distante e baixinho, que só poucos seres conseguem ouvir. Aqueles seres que sabem ouvir qualquer coisa. Aqueles seres que ficam desgarrados da humanidade e que se acham fora dela porque ouvem. Ouvem e se reconhecem como seres distintos, que cantam baixinho junto com aquilo que escutam. Neste coro de anjos ilegítimos, e nestas marolas onde ninguém quer mergulhar, vejo a alegria. Então me torno brisa e água e terra e fogo. E mato a sede do mundo sem ternura. E fecundo a terra árida dos corações esquecidos. E queimo as amarguras das almas entristecidas. Depois fico quieta, bem quietinha.

Sandra Porto


Imagem: Gota. Foto trabalhada no Photoshop, por Sandra Porto.

quinta-feira, julho 13, 2006

Último Capítulo

























114

Estética do Artifício

“A vida prejudica a expressão da vida. Se eu tivesse um grande amor nunca o poderia contar. Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é - crede-me bem - para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza."


Bernardo Soares, in O Livro do Desassossego.
Imagem: Último Capítulo
Fotógrafo: Marco Ricca

quarta-feira, julho 12, 2006

Como uma flor vermelha.
















Como uma flor vermelha.

À sua passagem a noite é vermelha,

E a noite que temos parece

Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,

Mas o eco dos seus passos

Enche o ar de caminhos e de espaços

E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece

E o desconhecido cresce

Como uma flor vermelha.

Sophia de Mello Breyner, in Poesia, Obra Poética.

domingo, abril 16, 2006

Páscoa



















Nem ovos, nem coelhos. O dia amanheceu indeciso, sem saber se chovia ou se solria. O computador não gosta de neologismos. Para cada palavra inventada, um vermelho de repreensão. O micro não é artista. Trabalhador braçal, que sempre opera por argumentos de autoridade: faça isto ou faça aquilo. O micro não pensa. Igual a muitos de nós, que por um engano do pensamento, achamos que pensamos. Tudo por causa do solrir.

Voltando à Páscoa fria, decidiu-se a natureza pelo calor e pela luz, coisa que muito me alegrou, por conta da incerteza de comemorar ou não comemorar o renascer. Ficaria com a pulga atrás da orelha se a vida conspirasse contra a comemoração, causando-me uma dúvida pra lá de cartesiana, já que ando decidindo crer não só para ver. Crer não só para ver. As palavras são como espelhos d’água turva, que refletem ao avesso aquilo que não se quer dizer, o indizível, o que nem mesmo se sabe o que é a não ser pela sensação ou pela intuição, ao mesmo tempo sabendo-se exatamente aquilo que seja.

Páscoa flamenca. Não da dança, mais do time. Páscoa vermelha e negra. Páscoa de gritos e não de sussurros. Páscoa da torcida. Páscoa de Jorge. Salve, Jorge!

Não foi tão mau assim, como dizem os teens. Sensação de ressaca, preguiça de começar de novo e contar comigo. Será que vai valer a pena, ter amanhecido?


Sandra Porto

Imagem: Le vieux juif (Le vieillard), Pablo Picasso.





sábado, abril 08, 2006

Play it again, Sam! (1ª parte)




Como era mesmo o nome dele? Passado quase trinta anos, não conseguia se lembrar com tanta facilidade deste detalhe, mesmo acordando todas as manhãs ao seu lado. Olhava à sua direita, já que gostava de dormir do lado do coração - superstição, coisas de mulher, sabe-se lá – e tinha a mesma sensação de desconforto. Sentava-se na cama e com muito cuidado para não acordá-lo, descobria o corpo envolvido pelos lençóis. Observava de um jeito minucioso, como um detetive a descobrir as pistas de um crime, os detalhes que já vira mais de um milhão de vezes. Às vezes até reconhecia alguns como, por exemplo, a cicatriz da cirurgia do acidente de carro que quase o matara desprevenido, porque afinal de contas, a morte, quando quer aparecer, não avisa a ninguém mesmo, não é não? E também aquele cheiro! Conseguia lembrar mais dos cheiros das coisas do que das coisas em si. Não dava muita importância aos registros oficiais das pessoas, como nomes, sobrenomes, coisas do tipo, porque sempre mentiam sobre elas. Não confiava nas palavras escritas, ditas ou oficializadas. Mas os cheiros não. Confiava que cada coisa tinha seu aroma próprio. Sabia do cheiro dos medos, das alegrias, dos interesses escondidos e até dos pensamentos guardados no bem no fundo das almas das pessoas.

Sandra Porto

Fonte: Imagem: http://www.getty.edu

domingo, março 26, 2006

Ilógica



Precisou sair depressa para pegar um caderno onde pudesse jogar todos aqueles murmúrios que inundavam o quarto semi-iluminado pelo abajur de minarete que repousava ao lado de sua cama solitária. De vez em quando levava as mãos ao rosto para disfarçar o tumulto interno que aquela situação provocava. Dar-se à confissão deste momento como pulsante não era, realmente, o que a faria feliz. Pensava já ter passado – como um gato com suas nove vidas – facilmente por essa estranha sensação de nada a fazer. Mais uma vez amor...A sombra rápida e deslizante a convocava a cercar a questão com delicadeza e sobriedade embora não soubesse ao certo para que. Talvez estivesse a criar um novo hábito em substituição à tão conhecida fuga pela tangente, coisa que não mais satisfazia sua premente erupção em fogo e lava. O hábito não faz o monge, lembrou em desespero. Acreditava nestas coisas ditas de pai para filho, maldições seculares, heranças obscuras, assim, assim, terminando por se surpreender numa prisão de dogmas e crenças onde a chave para o libertas desaparecera fazia tempo. Quae sera tamen... Quem sabe o monge não usasse mais o hábito. Seria uma solução enquanto trocava as letras das palavras antes tão fáceis de se mostrarem através daquele lápis vermelho e negro. Estranha escrita, colorida e soturna.

Começara à toa, como achava que havia vivido até então, deixando que as frases nascessem sem muito pensar ou articular na lógica ou ausência dela, linguagem conclusiva, fechada, orientadora. Caso fosse surpreendida nesse instante por alguém curioso e inoportuno – condição natural ao sujeito – não saberia responder à questão alguma. A falta de objetividade às vezes a irritava profundamente. Era como se fosse lançada numa aventura sem mapa, bússola ou outra ferramenta qualquer de orientação. A noite também não a conduzia pelo deserto de si mesma, já que as estrelas se escondiam diante do tempo indeciso, confusas que ficavam diante da dualidade inverno e verão. Nada escapava a esta balança sem... A palavra faltara. Entendia pelo conhecimento anterior sobre os nomes das coisas que, para se ter a medida exata era preciso existir o ponto de sustentação de onde tudo partia e, certamente, para onde tudo voltaria. O fiel da balança. Quanta ironia, cogitava! A palavra ausente, traindo a quem a possuía, mostrara-se tão desleal quanto infiel. Prato cheio para uma análise, ato falho dentre todas as falhas de uma noite sem sono.

Sandra Porto

Imagem: CCB - Fotógrafo: Rui Romão

URL: http://ubbibr.fotolog.com/bichinhodafruta

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

A janela.















Aquela era uma janela antiga, com suas tábuas encravadas e tortas, sugerindo resistência e desistência ao mesmo tempo. Não se poderia saber ao certo a quê resistiram, pois a história muda de suas frestas só conseguiam suspirar baixinho os seus resmungos. Ao mesmo tempo, o diálogo leve e florido com as cortinas daquela casa aparentemente sem gente permanecia num querer fluido e sem jeito, na tentativa de reavivar a memória das coisas inertes que poderiam dar nexo ou mesmo contar na prosa viva dos tempos, os tropeços e esperas de alguém que, certamente, ali habitara...
E não era somente a janela que falava. Não era apenas a cortina florida que se balançava com o vento que entrava pelos buracos do vidro quebrado. A porta se abria para a entrada de qualquer coisa que pudesse trazer algo que lembrasse o que uma vez havia ali habitado: vida. E então por entre suas pernas tortas e finas de madeira, por entre os buracos esculpidos pelos cupins, entravam folhas e flores, formigas, gafanhotos e qualquer nuvem passageira que procurasse abrigo. Tudo era bem vindo e todos tinham passagem.

A pintura das paredes era por si só um capítulo à parte. Descamava de um lado, enquanto de outro procurava agarrar-se a todos os buracos do concreto que pulsava por baixo de todas as cores que já haviam sido empilhadas, uma por cima da outra, "mudanças de humor", como a dona que ali morara um dia gostava de chamar. E então a tinta soltava-se como pele, deixando à mostra apenas as cicatrizes de algo que havia se tornado (aos poucos) nada além do que as cinzas das brasas que arderam outrora (como quase tudo neste mundo...). E, como tudo se tornou -- cinza -- também as paredes mereciam o mesmo fim. Concreto aparecendo por baixo dos nacos grossos de camadas de humores, dia a dia sufocando a outra metade que se agarrava à esperança de que alguma coisa algum dia viria.
Sandra Porto.
Colaboração:Alessandra Archenar.
Fonte:

sábado, janeiro 14, 2006

A Dança




















"Mas depois que cantarolou a sua canção e se escondeu num apertado canto da sala, começou a provar a alegria de sua solidão. Tal alegria, que no começo da noite lhe parecera falsa e trivial, era como um ar acariciador, passando alegremente pelos seus sentidos, escondendo dos outros olhares a agitação febril do seu sangue, enquanto por entre os dançarinos que circulavam e por entre a música e as risadas, o olhar dela vinha direto ao seu canto, adulando-o, zombando, procurando, excitando seu coração."

James Joyce, in Retrato do Artista Quando Jovem, ed. Civilização Brasileira.

Fotografia: Henri Cartier-Bresson.

Fonte: http://www.bregler-fotografien.de