sábado, janeiro 10, 2009

Segunda Criatura.


Fel puro. Brevemente descrito, engenhosamente conceituado. Pinto minha boca com batom vermelho, não por luxúria, menos ainda por sedução. Bette Davis renascida das cinzas, tal como uma fênix pós-moderna, mantendo os longos vestidos brilhosos e acetinados, como não? Puro escárnio. Meu dorso tem as marcas dos desesperados pensamentos de repreensão. Culpa cristã? Provavelmente. Não poderia mesmo ser de outra forma. Lembro que estamos na quaresma e rio por dentro ao ver quão entranhado as coisas da religião estão em nós. A história do macaco e do pote de mel. Pois é. Sem remorsos ou vergonhas, ora bolas (como diria Mário Quintana). Na maior cara-de-pau! Porque vergonha é coisa de gente que pensa que não tem lugar no mundo dos homens de ternos pretos, colarinhos engomados, maletas cheias de papéis importantes (pretas também, of course) e decisões que abalam a vida do planeta. Não esta criatura. Ela se dá muito bem obrigada com todo este glamour televisivo. Estes dos plásticos coloridos, objetos descartáveis, monóxidos de carbono, comida que voa pelos balcões dos atendentes formatados como softwares modernos. Dá-se muito bem com a última moda, os dvds, cds, laptops. As muitas mídias. A confusão das ruas é sua trilha sonora. Os barulhos dos carros sua canção de ninar. Fel Bette não conhece as misérias. Gente que passa fome, vestindo-se de trapos, que sofre as dores mais terríveis. Um universo pararelo, coisa de cinema de péssima qualidade, notícia da imprensa sensacionalista afim de vender jornais. Gossip world! Não ela. Suas são as luzes brilhantes, os móveis reluzentes, os ambientes assépticos, as mesas fartas e bem-postas. Suas são as palavras escolhidas, as frases bem estruturadas, todos os erres e esses. Poucas, mas contundentes. O fel que existe em mim te despreza. O mundo com pôr-do-sol não faz sentido na trama desta vida pouco biografada: de seda-pura, evidentemente. O fel que existe em mim se esconde no coração de todos. Afinal de contas, muito poucos tem a bravura de mostrar o seu lado dark da força. Mea culpa, again. Mas quando a noite chega, no escuro do quarto de dormir, sob os lençóis de algodão egípcio, fique atento meu amigo, porque bem baixinho você ouvirá uma música. Sussurada, rouca, cheia da ternura que nenhuma pura Davis poderia transbordar sem se revelar. Um pequeno soprar melodioso que dirá que a felicidade foi embora e que a saudade em seu peito, ainda mora...


Sandra Porto.


Imagem: Bette Davis
Fonte: http://www.doctormacro1.info/

Le petit planète.


Pinto as paredes do meu quarto com as cores de meus presságios. Alguns se revelam claramente, sem hesitações, no lidar diário da vida comum. Outros se apresentam em sonhos estranhos, com tonalidades tão reais que penso estar acordada. Os presságios, que respiram por meus poros, surgem como uma frase dita sem pensar. Como aquelas que quando você percebe, já falou. Na maior parte das vezes, eles não atingem ninguém além de minha própria alma que, nestes momentos, se constrangem em dores inenarráveis. Tal como chuva cerrada, me afogo ao tentar arrancar delas a compreensão. Presságios prescidem de tais atentados. Vêm e pronto. Oráculos pouco desvelados não me ajudam em nada. Condição de existência não escolhida, sofro dos suores em technicolor. Agora mesmo não tenho cor alguma na parede muda de meu quarto. Acostumada a habitar este mundo além do real, estranho o estado do silêncio abismal que se faz em mim. Quem sabe uma nova ordem inaugure esta época diversa em meu pequeno universo e planetas ainda não descobertos constituam a verdadeira declaração sobre mim. Talvez sim, talvez não. A certeza porém do arcanjo a flutuar em amarelos e abóboras me conduz ao ousar da entrega. Sonhares. Presságios virão. E irão embora. Em minha mão um pincel delineará o caminho das estrelas, perto, muito perto de meu coração.


Sandra Porto.