quinta-feira, outubro 27, 2005

Mini-Conto Oriental


Escuto teus ventos e tuas brisas. Quem dera fosse surda aos murmúrios do porto...
Meus dias são repletos de dúvidas e incertezas, como se fora um sibilo sem fim afetando a capacidade de responder aos apelos. Ensurdecedor este silêncio que me acaricia o pensar. Quando assim acontece, as possibilidades de respostas ficam assustadas, tal como as crianças que temem o abandono de suas mães e, desprotegidas, se escondem sob as fantasticamente seguras e invioláveis cobertas. O tempo também não se faz amigo nestas horas de resoluções implacáveis e às vezes se torna necessário burlá-lo para o retorno da contemplação alegre e pacífica. Por um ato de misericórdia dos deuses, a beleza e a delicadeza, que nascem dos divinos gestos jamais perdidos na memória dos imortais, são irmãs generosas, definitivamente instadas neste caduco existir. As letras, arrumadas de uma forma quase tocável, tornam-se autônomas, possuidoras de inteligência irrefreável e brilhante, rebeldes que são de seu criador. Fechando-se num modelo de complexa enquadratura, a narrativa fica impedida de continuidade.
O intervalo no tempo da vontade que originou a declaração tão fresca e benfazeja, sofre a ameaça nebulosa da perspectiva do abandono e do esquecimento. Nestes momentos o porto torna-se não crível. Perdida talvez a lembrança de tudo. Quem sabe? Certas coisas não são re-inauguráveis a não se pela insistência tola de um desejar compulsivo no existir de um sopro de vida que tenta, nas bravatas dos mares crespos e morenos que separam continentes e raças, se fazer ouvir. Aparecer e desaparecer, ao gosto dos ventos e das ondas pode ser uma solução provisória, mas oportuna. Embora o enjôo deste pendular acontecer contínuo, a sensatez precisa da legalidade a fim de construir caminhos sobre as águas. Soberba presunção! A nada se dirigem os dias de insanos esgares textuais, gerados a sopapos, no meio da tarde de sufocados vapores, querendo estar em qualquer lugar que não aqui!

O samurai, envolto em seu branco quimono, realiza a morte honrada. E resgata sua dignidade.



Imagem: Femme de Saint-Lazare par clair de lune, Pablo Picasso.

Fonte: http://csdll.cs.tamu.edu:8080/picasso







sexta-feira, outubro 21, 2005

Despertando
























Raio de luz
Caminho de estrelas
Mergulho o infinito
Assim é.

Pedaço de terra
Brotando as sementes
Doce alimento da vida.
Assim existo.

Fibras palpitando
Incessantes
Pedidos sem eco.
Assim sofro.

Música do espaço
Acordo meu sono
Eterno.

Desperto o amor.

Fonte: http://www.absolutearts.com




quarta-feira, outubro 05, 2005

O fotógrafo


























Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei.
Eu conto: Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa. Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carrega-dor?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral
de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi um lesma pregada na existência
mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no
olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a
desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na
aldeia de braços com Maiakovski -seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma
roupa mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.


Manoel de Barros

Fotomontagem: Ananda Porto



sábado, outubro 01, 2005

Mundo Pequeno

Posted by Picasa












O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latasmaravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidascom aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, osbesouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos.


Manoel de Barros.


Fotografia: Joaquim da Cunha Bueno Marques.