quinta-feira, julho 27, 2006

Marés



















Tenho fases assim como as marés. Às vezes calma fico, e assim não me reconheço. Nestes tempos onde não me acho e onde todos a mim procuram sem encontrar, me espraio feito uma onda bebê nascida do ventre fértil de Iemanjá, e choro. Chorar rítmico, como se fora uma música composta pelos ventos leves que não querem nada além de refrescar as nossas peles ressecadas pelas dores do mundo. Um toar distante e baixinho, que só poucos seres conseguem ouvir. Aqueles seres que sabem ouvir qualquer coisa. Aqueles seres que ficam desgarrados da humanidade e que se acham fora dela porque ouvem. Ouvem e se reconhecem como seres distintos, que cantam baixinho junto com aquilo que escutam. Neste coro de anjos ilegítimos, e nestas marolas onde ninguém quer mergulhar, vejo a alegria. Então me torno brisa e água e terra e fogo. E mato a sede do mundo sem ternura. E fecundo a terra árida dos corações esquecidos. E queimo as amarguras das almas entristecidas. Depois fico quieta, bem quietinha.

Sandra Porto


Imagem: Gota. Foto trabalhada no Photoshop, por Sandra Porto.

quinta-feira, julho 13, 2006

Último Capítulo

























114

Estética do Artifício

“A vida prejudica a expressão da vida. Se eu tivesse um grande amor nunca o poderia contar. Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é - crede-me bem - para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza."


Bernardo Soares, in O Livro do Desassossego.
Imagem: Último Capítulo
Fotógrafo: Marco Ricca

quarta-feira, julho 12, 2006

Como uma flor vermelha.
















Como uma flor vermelha.

À sua passagem a noite é vermelha,

E a noite que temos parece

Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,

Mas o eco dos seus passos

Enche o ar de caminhos e de espaços

E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece

E o desconhecido cresce

Como uma flor vermelha.

Sophia de Mello Breyner, in Poesia, Obra Poética.